Como sete irmãos e seus leões aterrorizaram uma cidade na Líbia

Os irmãos Kani comandaram um reinado de terror na cidade líbia de Tarhuna. Agora seus crimes estão sendo revelados.

Dois dos leões dos irmãos Kani

Foto: BBC News Brasil

Eles eram a família do inferno. Por anos, os irmãos Kani mantiveram uma pequena cidade líbia em suas garras assassinas, massacrando homens, mulheres e crianças para manter sua autoridade. Agora, os crimes deles estão sendo lentamente revelados.

Há sete meses, trabalhadores em macacões brancos de proteção contra produtos químicos estão voltando para a pequena cidade agrícola de Tarhuna, a cerca de uma hora de carro a sudeste da capital da Líbia, Trípoli. Eles marcaram retângulos com fita vermelha e branca, através dos campos de terra marrom-avermelhada, e desses lotes levantaram 120 cadáveres, embora grandes áreas ainda permaneçam intocadas.

“Cada vez que escavo um novo cadáver, tento ser o mais cuidadoso que posso”, diz um dos trabalhadores, Wadah al-Keesh. “Acreditamos que se você quebrar um osso, a alma dele vai sentir.”

Alguns parecem ser os corpos de jovens lutadores mortos em batalhas em torno de Tarhuna no ano passado, no nono ano da guerra civil da Líbia. Mas muitos são civis (incluindo mulheres e crianças de apenas cinco anos), alguns com sinais de tortura.

Os corpos enterrados são o legado horrível de um reinado de terror, que durou quase oito anos, imposto à cidade por uma família local, os Kanis, e a milícia que eles criaram.

Wadah al-Keesh ao lado de algumas das covas que ajudou a escavar

Foto: BBC News Brasil

Três dos sete irmãos Kani estão mortos agora, e os outros foram obrigados a fugir em junho de 2020 por forças leais ao Governo do Acordo Nacional (GNA) da Líbia, reconhecido pela ONU, mas até agora muitos residentes de Tarhuna têm medo de falar sobre seus crimes. Alguns dizem que ainda estão sendo ameaçados de longe pelos apoiadores dos Kani.

Juntar a história dos irmãos — Abdul-Khaliq, Mohammed, Muammar, Abdul-Rahim, Mohsen, Ali e Abdul-Adhim — não é fácil. Mas o que emerge das conversas com aqueles que os conheciam é uma história aterrorizante de como uma família pobre aproveitou o caos que envolveu a Líbia após sua revolução de 2011 contra o ditador, o coronel Muammar Gaddafi, e passou a governar sua comunidade com crueldade absoluta.

“Aqueles sete irmãos eram pessoas rudes, sem educação. Seu status social era zero”, diz Hamza Dila’ab, advogado e ativista comunitário, que se lembra de tê-los conhecido em casamentos e funerais antes de 2011.

“Eles eram como um bando de hienas quando estavam juntos. Eles xingavam e brigavam. Eles podiam até bater uns nos outros com varas.”

Famílias inteiras mortas

Quando a revolução estourou, a maioria das pessoas em Tarhuna permaneceu leal a Gaddafi. O ditador havia favorecido a cidade, dando aos homens de suas principais famílias bons empregos em suas forças de segurança. Os Kani estavam entre os poucos que apoiaram os revolucionários — embora não por idealismo, diz Hamza Dila’ab, mas por causa de uma rixa de 30 anos com alguns primos, uma família de apoiadores de Gaddafi.

Na turbulência após a queda de Gaddafi, os irmãos viram sua chance.

“Os Kani lenta e discretamente conseguiram que aquela família fosse assassinada, um por um”, diz Hamza Dila’ab.

Mas isso deu início a um ciclo de vingança que culminou no assassinato, em 2012, do segundo mais novo Kani, Ali.

“Ali era um jovem e bonito irmão Kani e, quando ele morreu, eles o transformaram em uma lenda”, diz Jalel Harchaoui, um especialista em Líbia do Instituto Clingendael na Holanda, que pesquisou a história da família.

“Os irmãos decidiram responder ao assassinato dele não apenas encontrando os responsáveis e matando-os. O que eles realmente fizeram foi matar suas famílias inteiras”.

Os Kani gradualmente assumiram e construíram algumas forças militares existentes na cidade, criando sua própria milícia de vários milhares de combatentes. Como a maioria das milícias na Líbia, tinha acesso a fundos estatais. Os irmãos restantes usaram usaram a vingança para carimbar sua autoridade absoluta em Tarhuna.

“A política deles era aterrorizar as pessoas apenas para criar medo. Eles matavam apenas por esse motivo. Qualquer pessoa em Tarhuna que se opusesse a eles morreria”, disse Hamza Dila’ab.

Hanan Abu-Kleish estava em casa no dia 17 de abril de 2017 quando uma multidão de milicianos Kani entrou. “Um deles apontou uma arma na minha cabeça”, diz ela. “Ele me perguntou quem estava na casa e eu disse: ‘Ninguém’. Mas ele me arrastou para o quarto do meu pai. Disseram para ele: ‘Vamos matar você primeiro.’ E eles realmente fizeram. Fiz tudo o que pude para impedir. Mas eles apenas atiraram balas no peito dele.”

Três irmãos de Hanan também foram mortos naquele dia, e dois de seus sobrinhos, de 14 e 16 anos. Outros parentes estão desaparecidos após terem sido aparentemente sequestrados pelas forças dos Kani. Hanan diz que não havia motivo, a não ser o fato de que sua família era relativamente rica e respeitada em Tarhuna.

A essa altura, os Kani haviam estabelecido seu próprio miniestado dentro e ao redor de Tarhuna, controlando até a polícia uniformizada. Eles administravam um império comercial, extorquindo taxas de uma fábrica de cimento e outros negócios locais, construindo um shopping center e administrando alguns empreendimentos legítimos, incluindo uma lavanderia. Eles lucraram com a “proteção” dos traficantes de drogas e dos migrantes cujas rotas cruzavam seu território no caminho do Saara à costa do Mediterrâneo. E, ao mesmo tempo, eles se gabavam de combater o tráfico e criar uma ilha de ordem na Líbia devastada pela guerra.

À frente do miniestado estava Mohammed al-Kani, um salafista (seguidor de movimento fundamentalista do Islã) e o segundo mais velho dos irmãos. Ele era o único membro da família com um pouco de educação e um emprego regular remunerado. Antes da revolução, ele havia trabalhado como motorista para uma empresa de petróleo. Frugal e calmo, ele geralmente usava uma vestimenta salafista tradicional.

Mohammed al-Kani, o salafista (à esquerda), e os dois principais assassinos, Mohsen e Abdul-Rahim

Foto: BBC News Brasil

“Geralmente, em famílias de gangsters, a pessoa no alto da hierarquia não é particularmente assustadora ou até carismática”, diz Jalel Harchaoui. “No topo, você geralmente encontra a pessoa que é capaz de entender todos os complicados esquemas necessários para fazer toda a pirâmide funcionar. E esse foi o caso de Mohammed.”

Abaixo dele, Abdul-Rahim, de cabeça raspada, era o encarregado da “segurança interna”, lidando com qualquer suspeito de traição, enquanto Mohsen era o “ministro da Defesa”, encarregado da milícia Kani.

“Abdul-Rahim era o assassino número um. Depois dele, Mohsen”, lembra Hamza Dila’ab. Ele diz que ele, e muitos outros que fugiram de Tarhuna, informaram sucessivos governos em Trípoli sobre os assassinatos, “mas infelizmente esses governos simplesmente ignoraram todos os crimes dos Kani, porque a milícia dos Kani foi útil para eles”.

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